Há algo nas viagens que me fascina, a forma como o ser humano se preparar para mudar. Como um ritual de iniciação, há uma preparação para sair para o trabalho, assim como um reajuste para voltar a casa. No meio sobra só a passagem, a mudança de postura e hábito.

Ficava preso na imagem dos transeuntes que cruzam a cidade num carro desconhecido. Transportando uma história que os move de um ponto ao outro. Fascinava-me a ideia de absorver histórias e experiências, sem ter que necessariamente fazer parte delas. Como quem lê um livro vivo.

Por vezes estamos tão perto dos conceitos que não nos é possível ver com clareza que eles já estão à nossa volta a existir. Demorei algum tempo a entender que o meu papel como tarólogo me trazia isso mesmo. A fugaz experiência da passagem. A passagem sem sair do lugar. Entre cartas ancestrais existem grandes vidas e singulares experiências. A consulta é como uma terra de ninguém, uma passagem, onde nada acontece mas a alma prepara o seu rito de iniciação à mudança.

Conduzo o carro sentado confortavelmente no banco da frente, sem julgar o transeunte que escolhe a minha boleia. A partilha desta curta viagem gera um momento de observação ímpar. O passageiro olha no retrovisor os seus próprios medos reflectidos nas perguntas e na forma como escolhe contar a história. O tarólogo condutor tem quilómetros de rodagem e sabe reconhecer as manhas do ego. Todos somos frágeis, todos gostamos de esconder a fragilidade na ilusão de uma falsa segurança.

Termino sem cobrar taxa de bagagem. O passageiro segue, sem deixar nada mais que a marca nos estofos dos suores frios da ansiedade de quem cruza a linha da dúvida. Avança agora sozinho, novamente no ritmo urbano da vida. Eu sigo com mais uma história, um conto fugaz que cruzou o meu caminho.

Continuarei tarólogo sem praça de táxis onde estacionar, seguirei andando procurando as histórias que ainda não sei que existem.